Feriados religiosos no Estado laico: por que Aparecida e a Sexta-feira Santa não se equiparam ao “Dia da Reforma”

Recentemente, a deputada federal Daniela Reinehr (PL-SC) apresentou um Projeto de Lei que propõe instituir o Dia da Reforma Protestante como feriado nacional, a ser celebrado anualmente em 31 de outubro.
A iniciativa busca reconhecer a relevância histórica, cultural e espiritual do movimento iniciado em 1517 por Martinho Lutero, na Alemanha — considerado um dos marcos da civilização ocidental moderna.
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Sexta-feira Santa não é uma data confessional; é o coração do calendário cristão. Trata-se da memória da paixão e morte de Jesus Cristo, fundamento soteriológico comum a católicos, ortodoxos e a quase todas as tradições protestantes. No ordenamento brasileiro, a Sexta-feira da Paixão é expressamente contemplada pela Lei nº 9.093/1995 entre os “dias de guarda” que podem ser feriados religiosos definidos pelos municípios, por isso ela é observada, de fato, no país inteiro, ainda que a competência formal seja local. Isso a distingue de celebrações internas a uma denominação específica.
Nossa Senhora Aparecida é um caso singular: padroeira nacional com feriado nacional próprio. Não estamos diante de uma mera devoção particular, mas de um símbolo religioso-cultural assumido pelo Estado brasileiro como elemento de identidade coletiva. O dia 12 de outubro é feriado nacional por lei específica (Lei nº 6.802/1980), distinta da lei que lista os feriados civis gerais. Em outras palavras: além dos feriados nacionais “comuns” (1º de janeiro, 21 de abril, 1º de maio, 7 de setembro, 2 de novembro, 15 de novembro e 25 de dezembro), existe a exceção qualificada de Aparecida, reconhecida por norma própria.
O “Dia da Reforma Protestante” é, por natureza, uma efeméride confessional. A Reforma de 1517 é um marco histórico e teológico importante para as igrejas reformadas, com indiscutível impacto cultural. Nada impede, e é desejável, que seja celebrada pelas comunidades e reconhecida em âmbitos locais conforme a tradição, tal como prevê a Lei nº 9.093/1995 para feriados religiosos municipais. Transformá-la em feriado nacional é outro patamar: implica deslocá-la da esfera confessional para a de símbolos de coesão nacional. Um projeto de Lei, que institua o Dia da Reforma Protestante, tratar-se-ia de inovação legislativa que altera o equilíbrio atual do calendário.
O critério constitucional é a laicidade cooperativa, não a neutralização do religioso. A Constituição veda ao poder público “estabelecer cultos” ou “manter relações de dependência” com igrejas, ressalvada a colaboração de interesse público (art. 19, I). É neste marco que se compreende, por exemplo, a legitimidade de reconhecimentos com forte lastro cultural (como Aparecida) e a proteção aos dias de guarda no plano local (como a Sexta-feira Santa). A questão, portanto, não é “ser a favor ou contra protestantes”, e sim se existe interesse público amplo e transversal suficiente para elevar uma data confessional específica ao nível de feriado nacional.
Por que não dá para “comparar” as três datas?
– Âmbito teológico: a Sexta-feira Santa é núcleo comum da fé cristã; a Reforma é um marco intraconfessional das tradições reformadas; Aparecida é devoção católica que, no Brasil, adquiriu estatuto simbólico nacional. (A própria tradição reformada reconhece 31 de outubro como memória de seu surgimento; não é um evento compartilhado por todo o cristianismo.)
– Âmbito jurídico: Aparecida tem lei federal específica que a torna feriado nacional; a Sexta-feira Santa é protegida pela lei federal que autoriza feriados religiosos municipais (e, por isso, é amplamente observada no território); a Reforma, hoje, depende de novo juízo legislativo para ascender à condição de feriado nacional, juízo que deve demonstrar interesse público para além do círculo confessional.
– Âmbito cívico-cultural: Aparecida funciona, na prática, como marcador de identidade e coesão do povo brasileiro; a Sexta-feira Santa é um rito de memória que estrutura o calendário da maior parte dos brasileiros; a Reforma é relevante e merece respeito, mas não tem, no Brasil, a mesma função agregadora no espaço público.
Em um Estado laico que coopera com o religioso quando há interesse público, “cada coisa no seu lugar” significa:
— Sexta-feira Santa: núcleo universal cristão, feriado religioso garantido em âmbito local por lei federal.
— Nossa Senhora Aparecida: símbolo religioso-cultural assumido como feriado nacional por lei específica.
— Reforma Protestante: data confessional legítima e importante, plenamente celebrável nas igrejas e, se for o caso, em leis locais, mas que só faria sentido como feriado nacional se demonstrasse um interesse público amplo, comparável aos casos paradigmáticos acima. Essa distinção preserva o respeito às confissões, a identidade do povo e a laicidade cooperativa prevista na Constituição.
Pe. Rafael Uliano

